Nossas Igrejas precisam ser casas de acolhida, de refúgio, de descanso para tantas pessoas com suas vidas fadigosas
Seguindo a inspiração profética de São João XXIII, o Concílio Vaticano II buscou apresentar a Igreja como “uma Igreja dos pobres”. Por isso, na sua constituição pastoral afirma: “As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1,1). As conferências do episcopado latino-americano traduziram essa intuição conciliar com a expressão “opção preferencial pelos pobres”. Na trilha do Concílio, o papa Francisco, desde o início do seu pontificado, a começar pela escolha do nome do pobrezinho de Assis, não se cansa de repetir: “desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar” (EG, n. 198).
Porém, essa guinada da Igreja para os pobres enfrenta muitos desafios, dentre eles podemos destacar: suas estruturas pesadas e pouco eficazes para a evangelização; o clericalismo que desvirtua os pastores do povo de Deus, tornando-os muitas vezes meros “administradores” ou “funcionários do sagrado”, distantes dos pobres e sofredores; e por fim, uma necessidade de uma Igreja mais simples, que fala aos corações com ternura de mãe, que seja casa paterna e não uma “alfândega” burocrática.
A Igreja sempre viu a caridade para com os pobres como caminho de santidade. Se olharmos os inúmeros santos e santas da Igreja, a sua grande maioria não se destaca por suas mais altas teologias ou mais profundas espiritualidades, mas pela capacidade de se doar aos outros numa verdadeira caridade. Os documentos da Igreja são unânimes em afirmar que sem a caridade a nossa fé não passa de doutrinas vazias, sem eficácia na vida dos homens e mulheres.
Os profetas desde muito cedo já afirmavam que todo culto a Deus que não se traduz em caridade é uma idolatria (cf. Is 58, 1-11). A Carta de São Pedro chega a afirmar que a caridade é útil até para o perdão dos pecados. “Cultivai, constantemente, o amor mútuo, pois o amor cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4,8).
Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas, sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, àqueles que não têm com que nos retribuir (cf. Lc 14,14).
Desse modo, “não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres” (papa Francisco, EG, n. 48). Ou ainda, como nos recorda Bento XVI, “a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica”.
Há uma passagem no livro do Êxodo (21, 12-14) que ilustra bem o lugar dos pobres na Igreja. Segundo este relato bíblico, se alguém fosse condenado à morte injustamente, Deus lhe concederia um lugar no qual pudesse se refugiar, ou seja, o Altar servia de refúgio.
No livro dos Reis (1,50 e 2, 28-34) temos dois exemplos de pessoas que para não serem mortas se esconderam debaixo do Altar. Talvez pudéssemos pensar o Altar como a metáfora da Igreja, das religiões. Nossas Igrejas precisam ser casas de acolhida, de refúgio, de descanso para tantas pessoas com suas vidas fadigosas. Diante de tantos fardos que a sociedade impõe aos pobres e marginalizados, a comunidade de fé precisa ser braços que abraçam, colo que consola, azeite que cura as feridas. Como Jesus, a Igreja hoje precisa repetir: “vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardo, e eu vos darei descanso” (Mt 11,28).
Percebe-se que o nosso maior desafio é traduzir em gestos concretos a própria doutrina e teologia da Igreja. Não se trata de criar uma nova doutrina, mas de tirar as consequências pastoral e existencial da encarnação do Verbo de Deus que sendo rico se fez pobre para nos enriquecer (cf. 2, Cor 8,9). Neste sentido, precisamos de uma verdadeira conversão pessoal, pastoral e eclesial. É preciso coragem para abandonar as “estruturas caducas” que já não servem mais para a evangelização, mas que nos passam uma falsa segurança.
Muitas vezes, a Igreja, como instituição, passa a impressão de que é rica, outras vezes o profetismo da Igreja enfraquece ou se cala diante da opressão por medo de perder certos privilégios.
Como nos alerta Francisco: “Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem ‘fidelidade da Igreja à própria vocação’, toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo” (EG, n. 26). Para ser uma Igreja pobre para os pobres, faz-se necessário que todas as estruturas da Igreja se tornem missionárias, ou seja, estejam a serviço da evangelização e não apenas da autopreservação.
Outro desafio difícil de ser superado é o do clericalismo que busca o poder e o prestígio ao invés do serviço alegre e generoso. Esse mal não está presente somente entre clero, mas é um risco que todos nós corremos. O papa Francisco tem denunciado com veemência essa “praga” na Igreja, pois
“o clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja. O pastor tem a capacidade de ir na frente do rebanho para mostrar o caminho, ficar no meio do rebanho para ver o que acontece dentro dele e também ficar atrás do rebanho para garantir que ninguém seja deixado para trás. O clericalismo, ao contrário, pretende que o pastor esteja sempre na frente, estabeleça uma rota e se pune com a excomunhão aqueles que se afastam do rebanho. Em suma: é precisamente o contrário do que fez Jesus. O clericalismo condena, separa, chicoteia, despreza o povo de Deus” (papa Francisco).
Uma Igreja pobre para e com os pobres é uma Igreja simples, que prefere suscitar e acompanhar processos ao impor percursos. É uma Igreja próxima e em saída que vai às periferias humanas e geográficas, que faz companhia daqueles (as) que já se cansaram de esperar.
“Faz falta uma Igreja que não tem medo de entrar na noite escura deles. Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido” (papa Francisco).
Entretanto, é preciso superar a ideia “romântica” da missão. Uma Igreja pobre e próxima dos pobres será sempre uma Igreja perseguida. Os poderes opressores preferem manter a ordem e não aceitam a mudança. Talvez pudéssemos afirmar que uma Igreja pobre para e com os pobres será sempre uma Igreja de mártires, porque sem o sangue dos mártires dificilmente a Igreja será fiel ao seu Mestre que também foi um mártir por se colocar ao lado dos pobres.
Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN*
*Rodrigo Ferreira da Costa é é licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, com especialização em formação para Seminários e Casa de Formação. Atualmente é pároco da Paróquia de Santa Luzia – Arquidiocese de Teresina-Piauí.
Por Ascom
Texto reproduzido do site Dom Total
Foto de Capa: Padre Julio Lancellotti faz parte do movimento de rua que auxilia pessoas que se encontram nessa situação em São Paulo (Reprodução Instagram via @vi_angelo)